quinta-feira, 7 de junho de 2018

CARTA À MINHA MÃE








Carta à minha mãe

   Minha querida, tanto tempo vivemos juntas, tanto nos falamos, mas quanta coisa ficou a ser dita, quantas perguntas que não foram respondidas e quantas pendências ficaram a serem discutidas
   Fico pensando em como adquirimos uma cumplicidade nos últimos anos, nos quais falávamos e nos entendíamos com um olhar. Sabíamos quando uma ou outra estava desconfortável, ou quando estávamos tristes ou angustiadas. Queríamos salvar uma à outra de situações que estavam nos trazendo desconforto e às vezes metíamos os pés pelas mãos e chateávamos alguém sem querer. Aprendemos o que podíamos falar ou o que devíamos ignorar. Conheci segredos de família que não tinham sidos ditos até então. Conheci histórias nem sempre motivo de orgulho para quem foi protagonista. Fiquei sabendo fatos, que transformaram pessoas endeusadas em humanos com grandes falhas.
   Tenho que te pedir desculpas por não ter percebido que sua jornada estava chegando ao fim. Deveria ter entendido por que seu apetite se tornou frugal e não ter perdido a paciência quando na maioria das vezes forçava, sem sucesso que se alimentasse. Deveria entender que seu sono constante já era o final de sua vivência entre nós, assim como sua falta de interesse em assuntos antes tão bem vindos para uma conversa inteligente. De fato me recusei a perceber que estava próxima a sua viagem para encontrar os seus irmãos, o meu pai, seus pais e tantos outros que fizeram parte de sua vida.
   Não consigo esquecer sua última semana e precisamente seus dois últimos dias. Por causa do que foi chamado depressão, e chegando o médico à conclusão, de que o remédio não estava adiantando, aumentou sua dosagem. Aí uma pessoa que apesar de debilitada estava lúcida, respondendo às perguntas, de repente começou a alucinar e eu tive uma sensação de impotência e mesmo com a outra mexida no remédio, não deu tempo de tentar que você voltasse ao normal. Mas você pressentiu ou foi avisada. Naquela noite ao ir ao banheiro, estando então serena, falou: ”vou morrer hoje”.
   No dia seguinte pela manhã você se foi docemente.
   Que dor profunda, mas não tive tempo de chorar e nem me despedir. Tive que sair para resolver as situações práticas. E nesse momento não era a sua filha que o estava fazendo, mas uma terceira pessoa que consegui deslocar de mim mesma. Sensação péssima. Era como se não fosse você querida mãe, que estava dependendo de todas aquelas decisões, mas uma pessoa estranha. Nossa capacidade de defesa é enorme e complexa.
   Pedi desculpas antes, mas agora peço perdão por uma falha que me acompanhará o resto de vida que tenho. Você, mulher de grande fé e enquanto pôde rezou o terço todos os dias, foi sepultada sem ele. Não percebi e só depois me dei conta que falhei horrivelmente nesse sentido. Espero seu perdão e sua compreensão. Muita coisa para gerenciar e esse fato importante ficou em segundo plano. Se alguém percebeu não me alertou e a senhora se foi sem seu companheiro. Uma vez me disse que mãe sempre perdoa e me apego a esse dito para tentar não me mortificar com esse fato.
   Foi minha amiga nesses anos que ficamos apenas nós duas, fomos cúmplices, fomos complemento, fomos continuação.
   Fico pensando como somos parecidas. Não fisicamente. Você era bonita. Mas para mim ficou a preocupação constante com tudo e com toda a insônia, o sofrimento por antecipação, a semelhança do pé e da mão, a vontade de agradar quem nos visita, a vontade de saber cada vez mais, a curiosidade para aprender, a paixão pela leitura. Mas para por aí. Porque você tinha uma inteligência superior. Com certeza. Nunca poderia saber fazer tudo para o qual você tinha habilidade. Acho que posso afirmar que jogava em todas as posições. Era ótima cozinheira, sabia pintar, costurar, fazer inúmeros trabalhos manuais, entre tantas outras coisas. Múltiplas habilidades. Além do mais tinha uma cultura excepcional, sem viajar, mas através de leituras. Quando não sabíamos a origem de algum nome ou qualquer outra coisa, podíamos perguntá-la, pois saberia a resposta. Mas sabia antes de tudo e mais do que tudo amar e nos deixar esse amor que nos dedicou com prazer e com intensidade.
   Beijos querida! Seja feliz e nos proteja sempre!
   Sua filha que sempre cultivará sua lembrança!