quinta-feira, 20 de setembro de 2018

UMA HOMENAGEM






UMA HOMENAGEM

  Quando era criança e íamos visitar meus tios e primos em Niterói eu adorava brincar com minha prima Esmeraldinha que regulava idade comigo. Ela tinha uns brinquedos fascinantes e ali brincávamos por bastante tempo. Lembro-me do chinês que balançava a cabeça, da boneca que parecia um bebê de verdade, da mamadeira que enchia sozinha, do patinete e de tantos outros Ficava ansiosa toda vez que meus pais falavam que íamos visitá-los. Não tínhamos, portanto um convívio contínuo, mas a alegria desses encontros criou um carinho muito grande em relação a ela.
   O tempo foi passando e nos afastamos pela distância e pelo caminho que a vida toma sem nos consultar, mas nunca me esqueci do sentimento que tinha quando lá estava. Esse carinho perdurou durante todos esses anos.
   Reencontramo-nos via rede social e nos revemos em dois encontros de família que tivemos -Encontro da Família Hamam- e pude ver que o meu carinho e lembranças doces permaneceram depois de tantos anos afastadas.
   Mas por um caminho aleatório Esmeraldinha se foi mais cedo do que deveria.  Senti muito, como se convivêssemos no dia a dia. Com o tempo passando pensei que deveria lhe prestar uma homenagem. Mas, como? Não dizendo que era uma mulher bonita, inteligente e outros adjetivos. Não era esse o objetivo. Lembrei de que gostava muito de alguns textos que ela escrevia no Faceboock e procurando por lá achei alguns. Não sei se existem outros, mas, esses são maravilhosos.
    Sendo assim decidi publicar nesse blog esses textos que nos fazem lembrá-la com carinho e com respeito.




 “Quando as emoções começam a me arranhar como uma lâmina que corre pra lá e pra cá, a folha de papel em branco vem me socorrer, deixando-se ser preenchida com palavras, frases, períodos, que fazem escorrer choros, angústias, dúvidas, alegrias, saudades, vida. Ligação estreita entre o que acontece dentro de mim e o que vais sendo escrito no papel. Sentimentos extrapolam, pulando magicamente do interior para o exterior, vazando por todos os lados. Uma inundação difícil de ser contida. A alma embriagada lança-se num voo altíssimo. Mãos úmidas, coração palpitando, sinto-me um vulcão em erupção e misturo os papéis de narradora e personagem, perdendo um pouco a noção do que é ficção e do que é realidade. Não há um roteiro pronto e acabado, tudo vai acontecendo de acordo com o que dita o meu ser, atropelado pelos mais variados sentimentos e sensações. Presente, passado, futuro, vou e venho ao meu gosto, numa lógica que é só minha. Uma história vai sendo tecida, palavras se combinando, adjetivos adornando, advérbios detalhando, até ser colocado o ponto final. Gostaria de usar todas as palavras, se pudesse, para aliviar a sensação de sufoco que me deixa oca. Escrevo, escrevo e, entre uma vírgula e outra, lanço um olhar ao meu redor. O real me chama, mas prefiro ficar aqui, onde reino absoluta e grito com total liberdade. O pensamento não pode ser algemado. Eis a salvação. Penetro num mundo onde não existe o tempo linear. Tempo que corrói, que distancia, que aproxima. Ao sabor das minhas palavras, tudo acontece do meu jeito, pessoas nascem como flores, erguem-se sonhos e amores. Tudo me conta, tudo me diz. E, guiando as palavras, vejo brotar a esperança e a sensação de eternidade.”
ESMERALDA HAMAM


CARTAS DE UM AMOR SEM FIM


   “As famílias moravam na mesma rua: uma, de origem libanesa; outra, de origem portuguesa. A menina acabara de completar quinze anos e perdera a mãe. O pai, dono de uma loja de louças finas, no centro do Rio, falecera antes. Assim, os irmãos mais velhos preocupavam-se com ela e a protegiam de todas as maneiras. Do outro lado da calçada, a família do mascate que viera para o Brasil à procura de trabalho e melhores condições de vida, mantinha relações cordiais com os vizinhos. Um dos filhos, ruivo e amante dos esportes, remava, nadava e jogava futebol na areia, já que morava a poucas quadras da praia. Foi ali que se conheceram a menina e o rapaz, ele alguns anos mais velho que ela. Muito tímida, mal percebia o interesse dele que, discreto, aproximara-se dos irmãos daquela que seria a grande e definitiva paixão de sua vida. A menina achava-o velho e os cabelos ruivos, que conferiam a ele o apelido de Ferrugem, não lhe agradavam. "Saudades da nossa praia, dos gostosos banhos de mar. Delícias que não saem da minha memória. Tudo o que existe de belo e sublime: acima, o céu azul, cortado, aqui e ali, por brancas nuvens; à frente, o sempre encantado e misterioso mar. E, dominando tudo isso, a melhor das visões: você". Com muita paciência e insistência, o rapaz iniciou um namoro na calçada com a menina, a caçula da família, sem poder entrar na casa. Com o tempo, foi-lhe permitido ultrapassar os limites do portão, passando a namorar no banco da varanda, sinal de que o compromisso ficara mais sério. Ali, muitas vezes, sem trocar uma só palavra, compartilharam a alegria indescritível de estarem juntos. A delicadeza e dedicação do rapaz conquistavam, pouco a pouco, a menina, que encontrara nele uma segurança para sua vida, a segurança que havia perdido quando lhe faltaram os pais. Ele era o seu porto seguro, passou a admirá-lo e, confiante, foi em frente, certa de que seriam felizes juntos, A família aceitou-o bem, achavam-no respeitoso e, além do mais, formara-se em Direito. Passou a frequentar a casa da família. Formado, o rapaz foi trabalhar em outra cidade, no interior do Estado, mas o forte elo que os unia não foi abalado pela separação. "Após o nosso afastamento por motivo de trabalho, permanece em mim a sensação de nostalgia e saudade. Disseste, na tua última carta, que a minha ausência provocava em ti um certo desamparo, pelo fato de não me veres a teu lado. Que amor sublime nos une e enche minha alma de alegria!" Durante um bom tempo, a correspondência entre ambos testemunhou a força de um amor seguro e de uma saudade sem par. "Bem sabes que és para mim a estrela guia. Por nosso amor, vou vencendo os obstáculos da vida, esperando realizar a nossa sonhada união". Algumas vezes, por ocasião de feriados ou férias, ele voltava à cidade natal. "Querida, não imaginas o tamanho da minha saudade e do meu amor por ti. Poderia escrever milhares de cartas e, ainda assim, faltariam palavras para expressar a força do meu sentimento. Tenho certeza de que a distância não representa motivo de esquecimento. Apesar dela, juntos se acham nossos corações e com ela tivemos a certeza de termos nascido um para o outro". Passados alguns anos, já com emprego seguro, o jovem advogado tratou de alugar uma casa e mobiliá-la, pensando na chegada da futura mulher. Preocupava-o levá-la para longe, afastá-la da família, mas o amor falou mais forte para ambos e juntos superariam as adversidades. "Tenho ido quase todos os dias à oficina de móveis. Na minha opinião, eles ficarão colossais, não só pela competência do carpinteiro como pela beleza da madeira". Após o casamento, ela partiu com o marido para o interior. Aprendizado difícil; tudo ali era novo e estranho. Amadureceu rapidamente, sempre amparada pelo seu amor maior. A correspondência não se fazia mais necessária. Para eles, estava concretizada a realização de um enorme desejo: a vida a dois. Da união, nasceram cinco filhos. A cada nascimento, pegavam o trem e iam para a cidade onde os recursos eram melhores. Após alguns anos, mudaram-se definitivamente para onde se conheceram, voltando a ficar perto de suas famílias. Ali, nasceu a última filha, a caçula, que recebeu o nome da mãe: Esmeralda
(Trechos originais de cartas escritas por meu pai)

ESMERALDA HAMAM

                                               GOTAS DE LAMA
 “No ar, um frio úmido e insistente deixa na boca o gosto salgado de lágrimas que não secam. Rio a correr pelo rosto lambuzado de dor e desesperança. Um rio que nada tem de doce. Um rosto cujos traços estão sendo endurecidos, tal qual a lama que, depois de seca, torna-se pedra, Lama concreta, espessa, trágica. Lama venenosa, que avança sem parar, que mata. Mata lembranças, histórias, sentimentos, pessoas. Lama que suja a alma, invade o corpo, corre pelas veias. Intoxica.
Era uma vez..... um doce rio, o rio Doce. A lama cimentou a vida que nele existia. Fauna e flora foram soterrados. Cadê o rio? O rio que era doce? Acabou-se. Agora, virou o não rio.
Até quando a arrogância dos que se julgam poderosos (pobres coitados!) persistirá, esmagando direitos, burlando a ética, esbanjando autoritarismo e irresponsabilidade? Mara de lama.... Lama podre e nojenta, onde chafurdam os perfumados de colarinho branco. 
Só mesmo o poeta para descobrir atrás da lama toda a primavera. 
Por muito tempo, ainda restará na boca o gosto salgado das lágrimas.”
   ESMERALDA HAMAM