domingo, 24 de novembro de 2013

FOTOGRAFIAS DE RECORDAÇÕES E EMOÇÕES







FOTOGRAFIAS DE RECORDAÇÕES E EMOÇÕES

   Deveria existir uma máquina que fotografasse recordações. A imagem sairia exatamente como estamos pensando, como estamos recordando. É muito difícil ser fiel em palavras ao nos referirmos às imagens dos nossos pensamentos,  das nossas recordações. Como ser fiel ao descrever a nossa árvore, a taipa, no quintal do nosso sítio? Como fazer outras pessoas entenderem como ficavam os arreios colocados naquele travessão na horizontal sob ela? Não dá para contar em palavras, sem imagem nossos passeios a cavalo, as nossas pescarias no rio ou no valão. Como passar o drama da travessia do valão cheio de lama nas costas do meu irmão? O aperto que passamos com o meu avô o mandando atravessar me carregando, as caras assustadas dele com medo de não conseguir e a minha de cair naquele lamaçal? E o burro que se chamava Brinquedo? Quando empacava com o meu irmão montado e o meu avô Ibrahim o espetando para que andasse, mas ele só empinava! Como eu me assustava com medo dele derrubar o meu irmão! Não. Não dá para imaginar quem não estava lá. Onde está a foto deste momento?
   Como descrever a cor do cachorro que se chamava Sultão e como mostrar o pavor que ele tinha de pedras e a ira com que enfrentava um cabo de vassoura? E a vaca que correu atrás de mim? Eu, saída de uma doença, que não lembro o que era (acho que gripe), verde de tanto tomar chá de uma erva chamada Macaé, fui ver meu avô e meu irmão tocar umas vacas. Fiquei na porteira, quando uma delas olhou muito feio para mim e avançou. Corri, corri, corri muito, até chegar a casa. Onde está a foto dessa recordação, do medo que passei e da certeza que a vaca estava realmente atrás de mim?
   Alguém vai entender quando eu contar que tinham dois copos lá no sítio, um vermelho e outro amarelo, com cheiro de leite e que eram exatamente da cor de duas camisas que a minha mãe tinha? Onde está registrado?
   As nossas escapadas de casa, deixando nossos pais dormindo, para irmos ao curral cedinho para vermos tirar leite, o chiqueiro que ficava perto da tulha, onde nosso pai guardava os sacos de arroz colhido e sobre os quais brincávamos de escalar, o terreiro de pedra (que era de cimento), onde se secava o arroz e onde brincávamos quando estava vazio, os espanta-camarada, que é um espinho em pendão que jogávamos nas costas um do outro... Quem consegue saber exatamente como era a não ser eu e meu irmão? Mas... se tivesse uma máquina de fotografar recordações...
   A nossa viagem para o sítio, a emoção de ficar esperando o ônibus e depois a caminhada de 3 km para chegarmos até a nossa casa. O prazer de cortar caminho pelo pasto e sermos atacados por quero-queros. A magia de parar para beber água na casa de Dona Anita, que era uma mulher tão pequenina e que morava com seu marido seu Manoel, numa casa tão pequenininha com um chão de terra batida, mas que brilhava tanto que parecia casa de boneca. Quem poderia registrar minha sede constante ao passar por ali e beber aquela água embaçada, mas que para mim era uma delícia. Onde está a expressão de aborrecimento da minha mãe que aparecia sempre que eu atrasava a volta para pegar o ônibus? E o prazer de ser carregada no pescoço do meu pai no trajeto do sítio para a estrada quando me cansava?
   Quem poderá saber hoje como era o apito do trem que passava do outro lado do rio ao entardecer e que me dava uma sensação de tristeza, que eu não entendia o que era? Como mostrar a cena engraçada que era quando comíamos as traíras pescadas pelo meu avô e que engasgávamos com as espinhas e que minha mãe mandava comer angu? Come angu...Come angu...
   São muitas lembranças, incontáveis lembranças, tão vivas para nós que as vivemos, mas sem significado ou emoção para quem as lê ou ouve.
    Mas... se tivesse uma máquina de fotografar recordações...



   

TIA MARIA







TIA MARIA
  
  Maria Betão tornou-se uma lenda em Itaperuna. Educadora, batalhadora, dona de uma escola de sucesso e que é respeitada até hoje. Por que Maria Betão? Na família Boechat tinham muitas Marias então para denominá-las usavam-se os nomes dos pais, então era Maria do Betão, Maria do Joque etc. Ficou o nome e muitas pessoas até hoje acham que é seu nome próprio. Corria um boato, e eu acho que muita gente ainda pensa assim, que ela havia ficado paraplégica, pois tinha feito regime para emagrecer. Mas não. Ela foi acometida por um vírus na sua coluna e apesar de tratar, não teve jeito. Era uma mulher vaidosa, bonita. E antes de ficar doente, morava em Niterói, onde estudou, se vestia muito bem, só usava salto alto e se divertia muito! Depois que surgiu sua deficiência, houve necessidade de algumas adaptações assim que voltou a morar em Itaperuna. Precisava de uma pessoa boa, honesta e dedicada que a ajudasse, então caiu do céu a Regina, guardiã de todas as horas. Mais, muito mais! Foi sua amiga, sua filha, sua protetora. Foi fiel até o fim. Foi quem acolheu suas alegrias, tristezas, decepções, raivas, e todos os tipos de sentimentos. Tia Maria não seria tia Maria sem a Regina. Muitos anos depois chegou a Claudiane, sobrinha da Regina e que manteve junto com a tia a dedicação à Maria Betão.
    Essa era a mulher chamada Maria. Mas essa não é a minha tia Maria. A minha tia Maria fez parte da minha vida desde que nasci. Era minha tia avó e minha madrinha. Quando, bem pequena, estava aprendendo a rezar a Ave–Maria, a minha mãe mandava que eu repetisse: “Ave Maria, cheia de graças...”, mas eu só repetia: “Tia Maria...”
   Passei por vários sentimentos em relação a ela. Primeiramente era uma tia muito engraçada, que toda vez que ia à sua casa ela me falava: “Tudo bem, muito bem? Veio a pé ou veio de trem?” Achava o máximo, mas detestava quando me deixava marca de batom vermelho nas minhas bochechas. Depois que cresci um pouco e fui estudar no colégio “Externato Duque de Caxias” os meus sentimentos se confundiam entre respeito e medo. Ela era brava e eu me encontrava com ela fora da escola, então eu achava que aquela disciplina do colégio deveria se estender para os momentos de lazer. Quando fui para o C.E. 10 de Maio, já com 10 anos, novamente mudou meu jeito de me relacionar. Aí ficou só o respeito, o medo se foi. Conversávamos, mas eu era criança, então meu relacionamento não era estreito. Chegou a época de sair de Itaperuna para estudar fora. Fui para Petrópolis e quando entrei para a faculdade de Psicologia nosso relacionamento se estreitou um pouco mais e conversávamos bastante. Voltando para a cidade 17 anos depois ficamos amigas. Sempre passava em sua casa e era sempre muito agradável conversar com a minha tia. Conversávamos coisas sérias, fazíamos um pouco de fofoca, brincávamos uma com a outra. Quando fui trabalhar com a inclusão da pessoa com deficiência na escola regular, não pude mais dividir com ela meus sucessos e meus fracassos em relação ao tema, pois ela já tinha sofrido um AVC e não conseguia se expressar direito e talvez não estendesse o que falávamos. Senti muita falta disso. Queria muito ter podido conversar com ela sobre o tema e como vínhamos desenvolvendo o trabalho. Sua escola foi a primeira, que tenho conhecimento, que aceitou em seu quadro de alunos crianças com deficiência. Foi a primeira escola inclusiva de Itaperuna. E isso quando nem se pensava em inclusão!
   Apesar de ser rígida em relação à escola, de dar importância enorme à disciplina, a minha tia era uma mulher afetuosa, moderna, que aceitava certos comportamentos e atitudes dos jovens. Era generosa. Muitos alunos estudaram sem pagar o colégio e nunca foram cobrados por isso. Acolheu muitas pessoas em sua casa e ajudou a todas sem distinção. Para a família era ponto de referência a quem todos prestavam deferência, a quem todos tinham respeito. Era, por assim dizer a matriarca, a chefe da família.

   Faz muita falta para todos nós o seu apoio e a certeza que sempre estaria ali quando precisássemos, mas com certeza nunca será esquecida por quem a conheceu e que teve o privilégio de participar de sua vida.



                                                                    

                                                        Tia Maria e eu