FOTOGRAFIAS DE RECORDAÇÕES E EMOÇÕES
Deveria existir uma máquina que fotografasse
recordações. A imagem sairia exatamente como estamos pensando, como estamos
recordando. É muito difícil ser fiel em palavras ao nos referirmos às imagens
dos nossos pensamentos, das nossas
recordações. Como ser fiel ao descrever a nossa árvore, a taipa, no quintal do
nosso sítio? Como fazer outras pessoas entenderem como ficavam os arreios
colocados naquele travessão na horizontal sob ela? Não dá para contar em
palavras, sem imagem nossos passeios a cavalo, as nossas pescarias no rio ou no
valão. Como passar o drama da travessia do valão cheio de lama nas costas do
meu irmão? O aperto que passamos com o meu avô o mandando atravessar me
carregando, as caras assustadas dele com medo de não conseguir e a minha de
cair naquele lamaçal? E o burro que se chamava Brinquedo? Quando empacava com o
meu irmão montado e o meu avô Ibrahim o espetando para que andasse, mas ele só
empinava! Como eu me assustava com medo dele derrubar o meu irmão! Não. Não dá
para imaginar quem não estava lá. Onde está a foto deste momento?
Como descrever a cor do cachorro que se
chamava Sultão e como mostrar o pavor que ele tinha de pedras e a ira com que
enfrentava um cabo de vassoura? E a vaca que correu atrás de mim? Eu, saída de
uma doença, que não lembro o que era (acho que gripe), verde de tanto tomar chá
de uma erva chamada Macaé, fui ver meu avô e meu irmão tocar umas vacas. Fiquei
na porteira, quando uma delas olhou muito feio para mim e avançou. Corri,
corri, corri muito, até chegar a casa. Onde está a foto dessa recordação, do
medo que passei e da certeza que a vaca estava realmente atrás de mim?
Alguém vai entender quando eu contar que
tinham dois copos lá no sítio, um vermelho e outro amarelo, com cheiro de leite
e que eram exatamente da cor de duas camisas que a minha mãe tinha? Onde está
registrado?
As nossas escapadas de casa, deixando nossos
pais dormindo, para irmos ao curral cedinho para vermos tirar leite, o
chiqueiro que ficava perto da tulha, onde nosso pai guardava os sacos de arroz
colhido e sobre os quais brincávamos de escalar, o terreiro de pedra (que era
de cimento), onde se secava o arroz e onde brincávamos quando estava vazio, os
espanta-camarada, que é um espinho em pendão que jogávamos nas costas um do
outro... Quem consegue saber exatamente como era a não ser eu e meu irmão?
Mas... se tivesse uma máquina de fotografar recordações...
A nossa viagem para o sítio, a emoção de
ficar esperando o ônibus e depois a caminhada de 3 km para chegarmos até a
nossa casa. O prazer de cortar caminho pelo pasto e sermos atacados por
quero-queros. A magia de parar para beber água na casa de Dona Anita, que era
uma mulher tão pequenina e que morava com seu marido seu Manoel, numa casa tão
pequenininha com um chão de terra batida, mas que brilhava tanto que parecia
casa de boneca. Quem poderia registrar minha sede constante ao passar por ali e
beber aquela água embaçada, mas que para mim era uma delícia. Onde está a
expressão de aborrecimento da minha mãe que aparecia sempre que eu atrasava a
volta para pegar o ônibus? E o prazer de ser carregada no pescoço do meu pai no
trajeto do sítio para a estrada quando me cansava?
Quem poderá saber hoje como era o apito do
trem que passava do outro lado do rio ao entardecer e que me dava uma sensação
de tristeza, que eu não entendia o que era? Como mostrar a cena engraçada que
era quando comíamos as traíras pescadas pelo meu avô e que engasgávamos com as
espinhas e que minha mãe mandava comer angu? Come angu...Come angu...
São muitas lembranças, incontáveis
lembranças, tão vivas para nós que as vivemos, mas sem significado ou emoção
para quem as lê ou ouve.
Mas... se tivesse uma máquina de fotografar
recordações...
Nenhum comentário:
Postar um comentário